Uma química lucreciana?
FILOSOFIA DA NATUREZA I
Trechos relevantes:
Entrar no mundo de Lucrécio é como entrar em um mundo paradoxalmente nostálgico, que nos passa a impressão de um tempo vivido tão distante e ao mesmo tempo absurdamente presente. É experimentar através dos seus versos a dimensão de um mundo antigo, que chega a provocar estalos em nosso pensamento quando nos perguntamos: como é possível uma sabedoria tão profunda e assertiva sobre a natureza das coisas sem a tecnologia do mundo contemporâneo? Quando comparamos seu imaginário cosmológico e a amplitude do cenário que constitui a sua poesia, frente à nossa mesquinha racionalidade humana do mundo antropoceno, uma lição de humildade deveríamos sentir.
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Lucrécio nos ensina que o mundo é feito de primórdios, o primórdio das coisas são feitas de corpos primevos, que vagueiam por aí e que estão em todos os lugares, que são minúsculos, invisíveis a olho nú. O que é isso que é invisível e que está em todos os lugares? Os primórdios ocupam o espaço dentro de um vazio, possuem peso e se chocam. No choque, desfazem-se, misturam-se e distinguem-se uns dos outros. São infinitos, mas possuem eles mesmos a sua finitude. Vejamos o que fala o poeta:
Se consideras imóveis os primórdios das coisas,
e que, estando imóveis, podem gerar novos motos,
vagas ao longe das vias da razão verdadeira.
Pois, uma vez que eles vagam no inane, é necessário
ou que os primórdios das coisas por próprio peso se levem
ou talvez pelo golpe de um outro. Assim, quando sempre
em conflitos se encontram, repentinamente acontece
que se dissolvam diversos; não te espantes se, embora
sejam de sólida massa, nada há que impeça o seu moto.
E não importa pra onde observes lançarem-se os corpos
materiais, não verás fundamento pra soma das coisas
nem onde os corpos primeiros descansem, já que o espaço
não tem fim ou limite, latente pra todos os lados,
na imensidão se espalhando, conforme de muitas maneiras
já demonstrei em meus versos, provando em razão verdadeira.
Como consta, contudo, decerto nenhuma quietude
deve existir para os corpos primeiros no inane profundo,
mas, ao contrário, exercitam-se em moto vário e assíduo,
parte ricocheteando bem longe após um conflito,
parte percorre um espaço mais breve por conta do golpe.
(DRN II, 80-99)
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Os primórdios são o que nós poderíamos chamar de átomos hoje, mas que fique manifesto aqui, que primórdios não são átomos, são primórdios. A aproximação com as teorias físicas e propriedades químicas dos elementos atômicos nos serve apenas como uma tarefa de análise comparativa, e vale sempre levar aquela ideia à mente: como pode alguém falar tão precisamente desses elementos que hoje precisamos de microscópios, até mesmo aceleradores de partículas, para nos revelar algo que já foi pensado há milhares de tempos atrás pelos nossos antepassados? Apenas pela capacidade de observação e interpretação do mundo, muitas considerações foram feitas, o que nos faz imaginar a necessidade real dos poetas e filósofos do mundo antigo pedirem inspirações às musas, pois a impressão é que essas ideias vieram de fontes sobre-humanas que estão muito à frente do nosso tempo.
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Partículas rotundas, formas complexas, elementos agudos, suor dos mares, maneiras lucrecianas de exercitar a nossa imaginação e nos fazer projetar sensações através dos seus versos escritos, e de alguma forma ainda também nos conectar à própria mente do poeta, eis a grandeza dos símbolos que comungamos e que são capazes de nos fazer adentrar nos arquétipos da natura, isto é, a sua própria linguagem expressa através de ondas e imagens espectrais [….]
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Ainda sobre a modernidade, falamos hoje de átomos, de elementos químicos, que são ensinados nas escolas como se fossem coisas banais, pedaços de matéria, substâncias químicas, átomos que se juntam e formam moléculas. Mas a que serve tal conhecimento mesmo? Para construções de produtos que serão consumidos, fruto do capitalismo? À Lucrécio, por outro lado, serve muito. Os primórdios permitem não só a substancialidades das coisas, mas permite contar uma história de subseções das coisas, quero dizer, antes de separarmos a res extensa e a res cogitans sem medo do que isso pode gerar na história humana, podemos pensar, a partir da leitura de Lucrécio, em um fluxo que vai desde o choque entre corpos primitivos insensíveis, que dão origem a natura e só então a partir dela que características singulares de cada elemento irão se articular, criando corpos capazes de sensações, animações, gerando os sentimentos que experimentamos, ou seja, não tem aqui a idea de fora ou dentro, tudo já está dentro, tudo já faz parte e tem a sua finalidade, sua identidade e de modo fixo, isto é, servem a um propósito, entrando num ciclo de geração de vida que se renova constantemente, a partir de cópias infinitas que se mostram como figuras semelhantes, mas que são únicas.
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